Teoria: uma faca só lâmina por Leandro Dias


Num período como o atual, em que se fala tanto em desconstrução e descentramento, a teoria precisa, até mesmo para se afirmar enquanto tal, gerar possibilidade de (re)visões e argumentos “sugestivos ou produtivos para pessoas que não estão estudando [...] disciplinas” ligadas diretamente à área para a qual essa teoria foi inicialmente formulada. (CULLER, )

Implica dizer que a teoria, para ser teoria, precisa ultrapassar as barreiras da sua disciplina e ser “aproveitável” – de certa forma – em outras áreas, afins ou não. Pensando nisso, trago a imagem da “faca só lâmina”, de João Cabral de Melo Neto, para pensar essa teoria que, como a faca cabralina, ‘jamais é encontrada de barriga vazia’. Trata-se de uma teoria devoradora, que desloca os centros e anula a fixidez a tal ponto que não há nem local fixo para segurá-la: não há cabo, só lâmina.

Com uma teoria assim, não existe lugar para pegar que não fira. Há sempre cortes, desconfortos com os quais é necessário lidar para continuar a usar a faca.

Essa faca-teoria (ou teoria-faca) não é – não pode ser – improfícua: ela “vive a se parir em outras como fonte”. Suas visões e argumentos produzem outras visões e argumentos – leituras da teoria – num jogo infinito, caleidoscópico, de espelhos. A teoria-faca, como não tem cabo, vai sempre deixar chagas abertas, dentro, ou a partir, das quais leituras e espelhamentos ulteriores serão sempre possíveis.

Por isso, assim como a faca só lâmina produz mais facas, a teoria, vista aqui como leitura, produz sempre outras teorias, outras facas que, contemporâneas que são, enfrentam a mesma questão que a primeira leitura-teoria-faca: não têm cabo. São facas que tudo cortam: só lâmina.


*Leandro Dias é aluno da graduação em Letras pela Universidade Federal da Bahia. Disciplina LET B 92 - QUESTÕES TEÓRICAS DA CONTEMPORANEIDADE.

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Leitura de Hatoum e Cabral por Djalma Jacobina Neto

No conto “um oriental na vastidão”, de Miltom Hatoum, e no poema “uma faca só lâmina”, de João Cabral de M. Neto.

Um japonês culto e misterioso, que já havia encontrado boa parte do mundo, conhecido e conhecível pelo saber formal, buscava outro, o seu. Uma faca só lâmina, útil e inútil, estruturante do corpo, pois que intestina, e desestruturante, pois que lacera. O oriental acadêmico que sabe tudo e busca algo inalcançável ao saber e ao dizer. A faca estruturante que não se deixa alcançar.

Há entre o conto de Hatoum e o poema de Cabral, pontos que externam atributos da linguagem poética; que mostram a ação libertadora dessa linguagem pela indefinição do objeto, pela interação entre a subjetividade e a objetividade, pelos objetivos passíveis de aproximação, mas não de apreensão. É a expressão da linguagem da carência, da leitura da incompletude tão própria do ser humano. Ambos retratam uma dialética de aproximação a um objeto cuja própria natureza recusa apreensão.

Em ambos, há o deslocamento do foco, normalmente centrado na busca do sentido do texto, para um lugar outro, misterioso e inalcançável, por isso infenso a domínios. Há uma fuga do campo da teoria, delimitado, dominado, pretensioso; para o campo do incerto, do mutável, em que o valor do sentido do texto, calcado na palavra instrumento de representação, é substituído pelo valor da palavra arte ela mesma, com sua própria plasticidade.


*Djalma Jaconina Neto é aluno da graduação em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia. Disciplina LET B 92 - QUESTÕES TEÓRICAS DA CONTEMPORANEIDADE.

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Leitura de 'Uma faca só lâmina' por Alexandre Pitta

Pode-se pensar essa faca só lâmina como um corpo sem ponto de descanso, sem cabos nos quais se possa segurá-la evitando o corte: não há possibilidade de pleno domínio dessa faca. Dessa forma, a teoria metaforiza-se nesse objeto, pois nada – teórico ou corpus – escapa de seu corte, além de não se poder dominá-los totalmente. Além disso, esse corte, afiado que seja, atormenta-se com o que ainda não foi fatiado, com o que ainda é um corpo estranho, não digerido; essa boca, mesmo alimentada de teorias, observa, num misto de temor e desejo, o que ainda não passou por si – o que ainda é inteiro, completo, uno. Medo pelo desconhecimento desse novo alimento, do desafio que ele pode trazer na digestão; e desejo gerado por uma fome que não acaba.
Essa fome que a alimenta, mas, ao mesmo tempo, não é saciada é o desejo de se conhecer mais, a vontade de ampliar o horizonte do conhecimento humano, que é interminável. Daí o muito cortar que aumenta o corte da faca, tornando-a cada vez mais implacável, “fervorosa e enérgica” em seu ato. A teoria faz do homem essa faca que corta e se corta – que se constrói e se desconstrói – com ela. É essa boca faminta que, quanto mais se alimenta, mais deseja comer. É um fio que não se contenta mais em cortar finas folhas de papel ou linhas de costura para mostrar sua potência, mas sim busca cortar árvores inteiras. Seu olhar não é mais sobre um corpo inteiro, unidimensional, que será devorado completamente, mas sim sobre uma parte, uma seção. A teoria não comporta a completude, mas sim fatias – pontos de vista. Daí o vazio constante por saber que, assim como o que chega à boca não é completo, a teoria e o homem também serão fatias.

*Alexandre Pitta é aluno da graduação em Letras pela Universidade Federal da Bahia. Disciplina LET B 92 - QUESTÕES TEÓRICAS DA CONTEMPORANEIDADE.

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